Madame Satã

Talvez seja o espírito natalino, mas de tempos em tempos a ZeroZen resolve dar uma chance ao cinema nacional. Claro que, no fim das contas, tudo só serve para comprovar a tradicional falta de fé na humanidade desta impoluta publicação. Madame Satã é um desastre, dirigido pelo estreante Karim Aïnouz, de proporções mefistofélicas. Serve apenas para provar que nem sempre se pode ser Cidade de Deus.

O filme narra (?) a história de João Francisco dos Santos (Lázaro Ramos) uma espécie de malandro homossexual carioca da Lapa nos idos de 1932. Ou seja, ser artista transformista, capoeirista, cozinheiro, presidiário, pai adotivo e marginal ao mesmo tempo até que poderia render um personagem interessante. Mas o roteiro capenga, insiste em supervalorizar apenas a parte das estripulias sexuais de João Francisco. Isto deve marcar o surgimento de um novo movimento no cinema nacional. A cosmética da viadagem ou a estética da cenoura...

Madame Satã poderia explorar a luta de um artista negro para sobreviver ao preconceito da época. Poderia ser sobre a decisão de João Francisco enfrentar o mundo para defender, digamos assim, a sua arte. Mas nada disso acontece. Entre uma cena homossexual e outra o filme se arrasta de maneira claudicante sem conseguir dar uma explicação razoável sobre as motivações de um personagem tão complexo.

Aliás, as cenas de sexo, em tese, provocaram no Festival de Cannes de 2002, a saída de diversos espectadores das salas onde a obra foi mostrada, na seção Un Certain Regard. Fala sério. Como o tipo de gente que frequenta Cannes já viu todo o tipo de sacanagem possível, o mais provável é que o pessoal tenha achado o filme muito chato mesmo e preferiu ir para o bar encher a cara.

O filme, verdade seja dita, conta com uma boa interpretação de Lázaro Ramos que está realmente muito à vontade no papel principal. O resto do elenco se limita a fazer figuração. A prostituta Laurinha (Marcélia Cartaxo) e Tabu (Flavio Bauraqui), que deve ter sido o primeiro pit-bitoca brasileiro, servem apenas de escada para a histrionice de Madame Satã. O ardiloso Renatinho (Felippe Marques) que tenta enrabar, em vários sentidos, João Francisco também não consegue dizer a que veio. Por fim, ainda existe Amador (Emiliano Queiroz), o proprietário do bar Danúbio Azul, local onde Madame Satã começou a se apresentar.

De certa forma o mais impressionante do filme é exatamente isso. Depois de 105 minutos é possível sair do cinema sem a menor idéia de quem foi Madame Satã. Karim Aïnouz, co-roteirista de Abril Despedaçado, de Walter Salles, não está mesmo a fim de explicar coisa nenhuma. Não deixa de ser fascinante a incompetência narrativa da trama. A atriz Vitória dos Anjos (Renata Sorrah) foi mesmo decisiva para a carreira artística de João Francisco? É melhor ler um livro sobre o assunto ou, quem sabe, perguntar ao diretor...

Curiosamente a página oficial do filme em um arroubo de antipatia gratuita exige ao usuário, que quiser baixar fotos do filme, que preencha um cadastro. Como assim? Neste caso, fotos servem para divulgar a obra. Quanto mais pessoas estiverem dispostas a fazer isso, melhor para Madame Satã. É o óbvio ululante. Para isso é que servem este tipo de websites. Seria uma tentativa de fazer um spam do terceiro sexo? Sinistro, muito sinistro...

Paulo Pinheiro

(Madame Satã, BRA, 2002), Direção: Karim Aïnouz, Elenco: Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo, Flávio Bauraqui, Felipe Marques, Emiliano Queiroz, Rosa Maria Murtinho, Gero Camilo, Duração: 105 min.

P.S. - A verdade é que Madame Satã tem muito a ver com Rainha Diaba (74), embora Aïnouz negue de pés-juntos qualquer tentativa de plágio. De qualquer maneira nenhum dos filmes preenche (no bom sentido) as lacunas do personagem. Decididamente é melhor o cinema nacional deixar Madame Satã descansando em paz no inferno...

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